domingo, 14 de março de 2010

Porco e Pimenta

"Por um minuto ou dois Alice parou olhando para a casa, tentando imaginar o que fazer a seguir, quando repentinamente um lacaio vestido com libré apareceu correndo vindo da direção da floresta — (ela considerou que ele era um lacaio porque vestia um libré; por outro lado, julgando apenas pelo seu rosto, poderia chamá-lo de peixe) — e bateu com estardalhaço na porta com os nós dos dedos. Quem abriu foi outro lacaio de libré, com uma cara bem redonda, e olhos grandes como um sapo; e ambos os lacaios, Alice notou, tinham os cachos dos cabelos empoados. Ela estava muito curiosa para saber o que se passava e rastejou para fora da floresta para ouvir. O Peixe-Lacaio começou por retirar por debaixo do braço uma enorme carta, quase tão grande como ele mesmo, e a estendeu para o outro, dizendo, num tom solene: “Para a Duquesa. Um convite da Rainha para jogar críquete.” O Sapo-Lacaio repetiu, no mesmo tom solene, apenas mudando a ordem das palavras um pouquinho: “Da Rainha. Um convite para a Duquesa jogar críquete.” Então, ambos fizeram uma reverência, e seus cachos embaraçaram-se. Alice riu tanto disso, que teve que correr de volta para a floresta de medo que eles a tivessem ouvido; e, quando ela espiou novamente, o Peixe-Lacaio já tinha ido embora e o outro estava sentado no chão perto da porta, olhando fixo estupidamente para o céu. Alice dirigiu-se timidamente até a porta, e bateu. “Não adianta nada bater”, disse o Lacaio, “e por dois motivos. Primeiro, porque estou no mesmo lado da porta que você, segundo, porque eles estão fazendo muito barulho lá dentro, ninguém vai ouvi-la.” E certamente havia um barulho muito extraordinário acontecendo lá — constantes uivos e espirros e de vez em quando um enorme barulho de coisa quebrando, como se um prato ou um chaleira estivesse sendo quebrada em pedacinhos. “Por favor, então”, disse Alice, “como eu posso entrar?” “Haveria alguma razão em você bater na porta”, o Lacaio continuou, sem dar importância a Alice, “se houvesse uma porta entre nós. Por exemplo, se você estivesse dentro, você poderia bater, e eu poderia deixar você sair, certo?” Ele olhava para o céu durante todo o tempo que falava, e isso Alice achou decisivamente grosseiro. “Mas talvez ele não possa evitar”, a menina disse para si mesma, “seus olhos são tão perto do fim da cabeça. Mas de qualquer maneira ele poderia responder as perguntas. Como eu posso entrar?”, ela repetiu em voz alta. “Eu tenho que ficar aqui”, o Lacaio retomou, “até amanhã.” Neste momento a porta da casa abriu-se e um prato grande veio voando diretamente até o nariz do Lacaio, machucando seu nariz e terminando por quebrar-se em mil pedaços contra uma das árvores atrás dele. “...ou no outro dia, talvez”, o Lacaio continuou no mesmo tom, como se nada tivesse acontecido. “Como eu posso entrar?”, perguntou mais uma vez Alice, mais alto ainda. “Você ainda quer entrar?”, disse o Lacaio. “Esta é a primeira pergunta, você sabe.” Isso era, sem dúvida: apenas Alice não gostou que lhe dissessem isso. “É realmente espantoso”, murmurou para si mesma, “a maneira com que essas criaturas falam. É o suficiente para deixar qualquer um maluco!” O Lacaio parecia pensar que aquela seria uma boa oportunidade de repetir sua fala, com variações. “Eu devo sentar aqui”, disse ele, “de vez em quando, por dias e dias”. “Mas o que eu posso fazer?” disse Alice. “Nada que você goste”, disse o Lacaio e começou a assoviar. “Oh, não adianta falar com ele,” disse Alice desesperadamente, “ele é completamente idiota!” Ela então abriu a porta e entrou. A porta dava diretamente para uma grande cozinha, que estava cheia de fumaça de um lado ao outro: a Duquesa estava sentada num tamborete de três pernas bem no meio, embalando um bebê. A cozinheira estava inclinada sobre o fogo, mexendo um enorme caldeirão que parecia estar cheio de sopa. “Certamente temos muita pimenta na sopa!”, Alice disse para si mesma, ao mesmo tempo que espirrava. Havia certamente muita pimenta no ar. Mesmo a Duquesa espirrava ocasionalmente; o mesmo acontecia com o bebê, que espirrava e uivava alternadamente, sem um momento de pausa. As únicas duas criaturas na cozinha que não espirravam eram a cozinheira e um grande gato, que estava deitado no centro e sorria de orelha a orelha. “Por favor, a senhora poderia me dizer”, perguntou Alice timidamente, pois não estava muito certa se era educado falar primeiro, “porque seu gato sorri desse jeito?” “Porque ele é um Gato de Cheshire”, respondeu a Duquesa, “é por isso. Porco!” Ela pronunciou a última palavra com tanta violência que Alice deu um pulo; mas ela percebeu no instante seguinte que o chamado era dirigido ao bebê, e não a ela, então armou-se de coragem e tentou novamente: “Eu não sabia que os gatos de Cheshire sempre sorriam, de fato, eu nunca soube que gatos pudessem sorrir.” “Todos eles podem”, afirmou a Duquesa, “e muitos deles o fazem.” “Eu não conheço nenhum”, disse Alice muito polidamente, sentindo-se agradecida por ter conseguido iniciar uma conversa. “Você não sabe muito”, disse a Duquesa, “e isso é um fato.” Alice não gostou do tom da voz da Duquesa, e pensou que seria melhor introduzir um outro tema de conversa. Enquanto ela tentava encontrar um, a cozinheira tirou o caldeirão de sopa do fogo e começou a atirar sobre a Duquesa e o bebê todos os objetos que via pela frente — os atiçadores de fogo vieram primeiro, depois uma chuvarada de panelas de molho, pratos e louças. A Duquesa não ligava para nada, mesmo quando um dos utensílios a atingia: e o bebê estava uivando tanto, que era impossível dizer se os projéteis machucavam ou não. “Oh, por favor, veja o que a senhora está fazendo!”, gritou Alice, pulando de um lado para outro com agonia e terror. “Oh, lá vai seu precioso nariz” pois um enorme caçarola voou bem perto do bebê, e por muito pouco não o carregou. “Se cada um se preocupasse com seus próprios negócios”, disse a Duquesa, rosnando roucamente, “o mundo giraria mais rápido do que gira.” “O que não seria uma vantagem”, respondeu Alice, que sentia-se muito feliz pela oportunidade de mostrar um pouco do seu conhecimento. “Eu fico pensando que trabalho deve ser fazer o dia e a noite! A senhora vê, a terra leva vinte e quatro horas para girar em torno do seu eixo...” “Falando em eixos”, disse a Duquesa, “cortem a cabeça dela!” Alice olhou de soslaio ansiosamente para a cozinheira, para ver se ela iria seguir a sugestão; mas a cozinheira estava muito ocupada emxendo a sopa e parecia não ouvir nada; então, ela continuou: “Vinte e quatro horas, eu acho, ou seriam vinte? Eu...”(...)"


((Capítulo VI - Alice no País das Maravilhas))

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